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O princípio da proporcionalidade e o ato Ultra Vires

O presente artigo tratará do efeito do princípio da proporcionalidade em relação ao ato ultra vires, positivado pelo Código Civil de 2002. O tema tem grande relevância jurídica e social, uma vez que pretende fomentar a discussão da alteração legal trazida pelo diploma legal acima citado e seus efeitos práticos junto às relações mercantis, bem como o desdobramento jurídico de sua adoção.

O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E O ATO ULTRA VIRES

1. Introdução O Estado Democrático de Direito inaugurado pela Carta magna de 1988 trouxe a ascensão da interpretação constitucional. Uma resposta a várias décadas de descaso com o texto constitucional, na qual este texto tinha um papel menor, marginal. Nos últimos anos houve uma ascensão científica e política da Constituição, materializada na elaboração de uma densa teoria constitucional e uma jurisprudência voltada para a efetivação das suas normas. Dentro deste panorama, o método tradicional subsuntivo, que se materializa na submissão da realidade ao tipo legal, com a aplicação direta da lei, tornou-se insuficiente para atender a esta nova realidade constitucional. Não houve, por óbvio, a mitigação dos elementos tradicionais de hermenêutica, quais sejam, a interpretação literal, interpretação sistemática, interpretação histórica e interpretação axiológica, mas a sua conjugação com a interpretação constitucional, fulcrada na normatividade dos princípios, ponderação de valores e teoria da argumentação.

Hoje, é imperativa uma investigação dos fundamentos do texto constitucional no âmbito mais abrangente, metajurídico do domínio normativo. A interpretação constitucional, por sua vez, é informada pelos seguintes princípios: supremacia da Constituição, unidade da Constituição, interpretação conforme a Constituição, presunção de constitucionalidade, máxima efetividade e, finalmente, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, que para alguns autores guardam a relação de gênero e espécie, que será estudado melhor mais adiante. Por outro lado, o Código Civil de 2002, ao unificar legislativamente o Direito Civil e o Direito Comercial, trouxe substanciais alterações a este ramo do direito. Uma das inovações trazidas foi a adoção da teoria do ato ultra vires, que gerou muitas polêmicas no âmbito doutrinário. Leciona, com sapiência, o professor LENIO STRECK: “Assumem relevância, neste contexto, os princípios constitucionais, incidindo sobre o ordenamento e sobre a aplicação do ordenamento. Há um efeito de irradiação provocado pelos princípios, questão que pode ser observada nos tribunais constitucionais europeus e no desenvolvimento da teoria da argumentação jurídica, na medida em que toda a interpretação se submete aos princípios.” O presente trabalho pretende fazer uma breve leitura constitucional do mencionado dispositivo, a partir da aplicação do princípio da proporcionalidade à teoria em comento, uma vez que a interpretação do texto legal não pode ser destacada, alheia à hermenêutica constitucional.

2- O Princípio da Proporcionalidade Conforme DANIELA LACERDA SARAIVA SANTOS, a menção mais remota acerca do princípio da proporcionalidade se encontra na obra de Beccaria, ao tratar das sanções criminais e sua aplicação proporcional à gravidade dos delitos praticados. O seu desenvolvimento, no entanto, ocorreu no século XIX em âmbito administrativo, como medida para as limitações administrativas da liberdade individual. A vertente constitucional do instituto, porém, foi desenvolvida no direito alemão, conforme leciona LUÍS ROBERTO BARROSO, que o identifica como proporcionalidade em sentido estrito e que consiste na verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Cabe trazer à baila o conceito de NAGIB SLAIBI FILHO: “Denomina-se princípio da proporcionalidade a decorrência do princípio da supremacia da Constituição que tem por objeto a aferição da relação entre o fim e o meio (a Constituição é o meio de resolução de problemas), muito além do sentido teleológico ou finalístico, reputando arbitrário o ato que não observar os valores postos como prevalecentes pela ordem constitucional.” Complementa-se com PAULO DE OLIVEIRA LANZELOTTI BALDEZ: “De igual modo, apesar de não expressos no texto da Lei Maior, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade são de vital importância no estado Democrático de Direito – em cujo modelo de Constituição repousa o próprio fundamento constitucional desses princípios -, especialmente na aplicação e interpretação do direito. O princípio da proporcionalidade consiste em aplicar o Direito consoante uma interpretação que, sopesando as circunstâncias do caso concreto em face das normas jurídicas de natureza constitucional ou infraconstitucional aplicáveis, possa produzir uma solução justa e efetiva para o conflito.” Há quem entenda que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ensejam uma sinonímia. Tal assertiva, todavia, não guarda apuro técnico. Convém apontar a diferenciação sintetizada por WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO: “É certo que as diferenças entre os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade decorrem já de sua diversa origem, por assim dizer, cultural, sendo o primeiro de origem germânica e o outro, anglo-saxônica, como já destacamos, havendo mesmo resistências, neste último ambiente cultural, em aceitar a aplicação do outro princípio, hoje amplamente empregado na Europa Continental. Como acentua RAPHAEL SOFIATI DE QUEIROZ, pode-se associar a razoabilidade ao aspecto substantivo do devido processo legal, como é feito no ambiente anglo-saxônico, enquanto na Alemanha a proporcionalidade vem associada ora ao princípio (estruturante) do Estado de Direito, ora ao princípio (fundamental) da dignidade humana – e, daí, ao nosso outro princípio estruturante, do Estado Democrático. Isso não é incompatível com a vinculação do princípio da proporcionalidade à cláusula do devido processo legal – e, para marcar uma vez mais sua distinção da razoabilidade, ao aspecto processual da cláusula -, a qual descende, por derivação, também ela, enquanto consubstanciada por princípio geral consagrador de garantia fundamental, daquele princípio estruturante que é o do Estado de Direito.

Já o vínculo à dignidade humana, é próprio de todo direito (e garantia) fundamental, que tem seu núcleo essencial gizado por este ‘valor axial’ de um verdadeiro Estado (de Direito) Democrático.” Assim, o princípio da proporcionalidade deve ser aplicado para resguardar os pilares do Estado Democrático de Direito, que se estrutura, entre outros, na liberdade de iniciativa e fomentação da atividade econômica privada, na esteira do art. 170, usque, da Constituição da República de 1988. 3. O Ato Ultra Vires no Direito Comparado A teoria do ato ultra vires tem seu surgimento no direito inglês. Conforme lição do professor SÉRGIO CAMPINHO, o referido instituto tem surgimento nos meados do século XIX, objetivando evitar desvio de finalidade na administração das sociedades por ações e preservar os interesses dos investidores. E continua o professor a explicitar que, para esta teoria, qualquer ato praticado em nome da pessoa jurídica que extrapole o objeto social é nulo. Até 1856 a Inglaterra adotava o regime da outorga, ou seja, as sociedades anônimas só poderiam ser constituídas se houvesse autorização do poder real. A partir deste ano, ela passa a utilizar o sistema da livre criação, isto é, basta o registro no órgão competente para o exercício da atividade social, que delimitava o objeto e a responsabilidade dos sócios. Cabe registrar que a limitação da responsabilidade do acionista poderia gerar uma má utilização da sociedade. O professor FÁBIO ULHOA COELHO cita o caso Ashbury Carriage, de 1875, com uma referência acerca da matéria: “Uma companhia inglesa, cujo objeto social era, basicamente, a comercialização de equipamentos ferroviários, obteve na Bélgica, a concessão para construir e operar uma linha de trem. Para dar início à construção, contratou outra companhia inglesa. Quando os serviços já estavam sendo executados, a contratante postulou, e obteve, a declaração judicial de nulidade do contrato, tendo em vista a extrapolação do objeto social (Solomon-Schwartz-Bauman, 1983:158/159).” O rigor da ultra vires doctrine, no entanto, foi sendo minorada com o passar dos anos, já que o ato que extrapolava o objeto, deixou de ser nulo para ser imputável à pessoa jurídica e, posteriormente, caberia à sociedade responder pelo ato quando o desconhecimento do objeto social pelo terceiro de boa-fé fosse inescusável.

Até que, através do Company Act de 1989, foi banida definitivamente do ordenamento jurídico inglês, por conta da adesão do Reino Unido à Comunidade Econômica Européia. 4. O Ato Ultra Vires no Direito Pátrio e as Alterações Trazidas Pela Lei 10.406/2002 O Código Comercial de 1850 dispunha acerca da matéria, como se lê: Art. 316 – Nas sociedades em nome coletivo, a firma social assinada por qualquer dos sócios-gerentes, que no instrumento do contrato for autorizado para usar dela, obriga todos os sócios solidariamente para com terceiros e a estes para com a sociedade, ainda mesmo que seja em negócio particular seu ou de terceiro; com exceção somente dos casos em que a firma social for empregada em transações estranhas aos negócios designados no contrato. Pela redação acima, cabe concluir que o referido código possibilitava a irresponsabilidade social na hipótese de extrapolação do objeto. Cabe salientar que a regência sobre as sociedades limitadas ocorreu somente com o decreto 3.708/1919, que tratava do instituto nos seguintes termos: Art. 10. Os sócios gerentes ou que derem o nome á firma não respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, mas respondem para com esta e para com terceiros solidária e ilimitadamente pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei. As sociedades regulamentadas no Código Comercial de 1850 se tornaram ficção jurídica com o passar dos anos. O tipo societário mais adotado é, sem dúvida, o da sociedade limitada. E, pela redação do artigo acima se depreende que tais sociedades limitadas não adotaram a teoria inglesa. É o ensinamento de SERGIO CAMPINHO: “Inferia-se do art. 10 do Decreto nº 3.708/19 que a sociedade era sempre responsável pelos atos realizados, em seu nome, por seus administradores, pois, do contrário, seria despicienda a disposição legal que impunha ao dirigente a responsabilidade perante a sociedade e terceiros decorrentes do excesso de mandato ou da prática de atos violadores da lei ou do contrato. Se o ato não obrigasse a sociedade, sendo inválido ou ineficaz em relação a ela, não haveria motivo para responsabilizar o administrador perante a própria pessoa jurídica. Se esta tinha regresso contra ele, concluía-se que a sociedade obrigava-se perante o terceiro de boa-fé. Como o direito positivo era silente sobre os efeitos do ato ultra vires, essa era a melhor exegese que se podia extrair.” No entanto, a jurisprudência não seguiu de plano este entendimento. O Supremo Tribunal Federal declarou que “a firma social não se obriga perante terceiros pelos compromissos tomados em negócios estranhos à sociedade” (Rec. Extr. nº 361, Rev. de Jurisp. do STF, vol. I, pág. 217; Rec. Extr. nº 68.104, de 23-9-1969). Em 1971, o STF passa a adotar a teoria da aparência, responsabilizando a sociedade pelos atos praticados por seus sócios perante o terceiro de boa-fé. É a ementa dos embargos no Rec. Extr. nº 69.028 da lavra do Rel. Min. THOMPSON FLORES: “SOCIEDADE ANÔNIMA. TÍTULO DE CRÉDITO. AVAL DE UM DOS DIRETORES, EM DESATENÇÃO AO CONTRATO SOCIAL, EM PROL DE TERCEIRO DE BOA FÉ. VALIDADE. MOTIVAÇÃO. II. EMBARGOS DE DIVERGENCIA. NÃO PROVADO O DISSIDIO, DESCABE O SEU CONHECIMENTO. EMBARGOS NÃO CONHECIDOS.”

A doutrina também se inclina para a adoção da teoria da aparência. A professora MÔNICA GUSMÃO conceitua o instituto: “Opõe-se ao ultra vires a teoria da aparência, em que a sociedade se obriga perante terceiros, mesmo na hipótese do uso abusivo do nome empresarial, assegurado o direito de regresso contra o sócio que praticou o ato ultra vires.” Cabe a complementação através da lição de FÁBIO ULHOA COELHO: “(…) de modo geral, os problemas relacionados à extrapolação dos limites do objeto social sempre foram, e ainda têm sido, examinados à luz da teoria da aparência, com vistas à proteção dos interesses dos terceiros de boa-fé que contratam com sociedades.” O Código Civil de 2002, entretanto, não seguiu as tendências doutrinárias e jurisprudenciais. É imperiosa a citação do artigo 1.015 deste diploma: Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir. Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros de boa-fé se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses: I – se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade; II – provando-se que era conhecida do terceiro; III – tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade. Tem-se que o Código Civil em comento adotou expressamente a teoria do ato ultra vires, afastando a teoria da aparência para nortear os atos praticados pelos sócios em nome da sociedade. Assim, no eventual excesso, abuso ou desvio, haverá responsabilização perante terceiros. A alteração do regime foi comentada por FÁBIO ULHOA COELHO: “Com a vigência do Código Civil de 2002, porém, o direito nacional passa a contemplar, no capítulo atinente às sociedades simples, norma claramente inspirada na ultra vires doctrine, de acordo com a qual a prática de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade pode ser oposta ao credor como excesso de poderes do administrador (art. 1.015, parágrafo único, III).” O Código Civil de 2002 estabelece que em relação ao poder dos administradores em espécie, serão estes fixados no contrato social. Entretanto, no seu silêncio, os administradores têm amplos poderes de gestão, salvo para atos de alienação ou oneração de bens imóveis. É mister esclarecer que o novel diploma apresenta três vertentes para atos praticados em desconformidade com o contrato social. A primeira se encontra no inciso I do artigo 1.015, tendo em vista que são oponíveis aos terceiros as cláusulas restritivas de poderes dos sócios; na segunda hipótese, constante no inciso II, o terceiro só pode exigir do administrador (e não da sociedade) o cumprimento da obrigação, se ficar comprovado que ele tinha conhecimento da existência de limitação que não foi devidamente averbada; bem como o inciso III do mesmo artigo, que trata especificamente do ato ultra vires. O presente trabalho se desdobrará sobre esta última hipótese, cujo conceito a delimita como a teoria pela qual são nulos os negócios realizados pela sociedade não abrangidos em seu objeto social, porquanto lhe falta a capacidade legal para a sua prática.

5- O Princípio da Proporcionalidade Aplicado ao Artigo 1015 da Lei 10.406/02 O direito empresarial tem como uma das principais características a informalidade. As operações em massa e a rapidez com que são contratadas impõem a necessidade do afastamento do formalismo . Mas a união legislativa do Direito Comercial e do Direito Civil através do Código Civil de 2002, em muitos artigos não respeitou as peculiaridades do primeiro, uma vez que o referido diploma acabou por positivar mecanismos formais que não coadunam com a essência da atividade empresária. Não é diferente com relação à adoção da ultra vires doctrine pelo Código Civil de 2002. Este teoria já não é mais aplicada no país que a originou e também tinha sido superada pelo ordenamento jurídico pátrio. A sua adoção enseja um retrocesso. E mais, uma incompatibilidade com os princípios do direito empresarial. Pelo novo dispositivo legal (art. 1.015, CC/2002), toda vez que um empresário for contratar com outro deverá se dirigir, primeiramente, à Junta Comercial para verificar os atos constitutivos do outro empresário, com o fim de saber qual o objeto desempenhado por este. Se não o fizer e posteriormente for constatado que o ato praticado não está dentro do âmbito do objeto social, o contratante só poderá exercer seu direito de crédito em face do sócio que contratou a obrigação. Isto é uma conseqüência da publicidade que decorre arquivamento dos atos constitutivos no órgão competente. A lei presume que qualquer pessoa pode ter acesso a estes documentos. Não basta, então, que o credor solicite uma cópia do contrato social para o seu devedor, pois este pode não condizer com o último ato arquivado no órgão competente, sendo indispensável uma certidão atualizada, para cumprimento da exigência legal. Por isto, esta imposição seria justificável somente para empreendimentos de grande monta, já que o vulto do negócio demandaria mais cautela do credor. Não é demais mencionar, todavia, que a maioria dos exercentes da atividade empresária no Brasil são pequenos e microempresários. O contrato mais comum aos empresários é a compra e venda. Para exemplificar o absurdo legal, imagine um distribuidor de bebidas, v.g., que, ao revender para um bar R$ 1.000,00 em mercadorias, tenha que sair da sua loja, ir à Junta Comercial e pleitear os atos constitutivos deste empresário, devendo aguardar a burocracia do órgão competente e pagar os emolumentos em relação ao ato, que não são módicos. Por óbvio, a aplicação da teoria nesta hipótese se torna desmedida, pois isto ofende ao princípio da informalidade do direito empresarial e, principalmente, atinge a lucratividade do empresário. A interpretação do dispositivo em comento não poderá ser aleatória à realidade nacional e aos entraves que uma leitura literal poderá acarretar. A aplicação do princípio da proporcionalidade se torna imperativa, sob pena de afronta ao Estado Democrático de Direito, que fomenta a livre iniciativa da atividade econômica. São indispensáveis os comentários de JOSÉ AFONSO DA SILVA, citando Justino F. Duque Dominguez: “Vale dizer: a constituição econômica formal brasileira consubstancia-se na parte da Constituição Federal que contém os direitos que legitimam a atuação dos sujeitos econômicos, o conteúdo e limites desses direitos e a responsabilidade que comporta o exercício da atividade econômica.” O princípio da proporcionalidade deve ser aplicado também à interpretação da norma infraconstitucional, como justa medida na solução dos conflitos de interesses, já que “uma lei se faz código no cotidiano concreto da força construtiva dos fatos, à luz de uma interpretação conforme os princípios, ética e valores constitucionais”. A doutrina concorda com esta assertiva: “Uma leitura apressada desse dispositivo pode induzir à conclusão, falsa, por sinal, de que o novo Código não recepcionou a teoria da aparência ao permitir que a sociedade oponha o excesso por parte dos administradores sempre que comprovar que os atos por eles praticados eram evidentemente estranhos ao seu objeto. (…). A lei só exclui a responsabilidade da sociedade pela prática de atos dos administradores quando a sociedade possuir seus atos constitutivos devidamente arquivados no órgão competente. Neste caso, desde que cumpridas as formalidades legais (novo Código, art. 1.154), o terceiro não pode alegar desconhecimento do ato sujeito a registro. Do contrário, caberá a aplicação da teoria da aparência e prevalecerá a boa-fé do contratante. Interpretação diversa implicaria retrocesso e ofensa aos princípios basilares do Código de Defesa do Consumidor.” Segue a lição de SERGIO CAMPINHO: “Mas as regras devem, em ambas as situações (uso indevido e abuso do nome empresarial), ser interpretadas com racionalidade e razoabilidade. Não irá o seu princípio atingir o consumidor que adquire bens ou serviços perante a sociedade, visto que sua condição de hipossuficiência, não se lhe podendo exigir que se dirija ao registro da sociedade e obtenha certidão de seu ato constitutivo para prévia verificação. Na operação de consumo em massa, efetivamente, não devem as regras ter aplicabilidade, o que, por outro lado, emperraria o próprio negócio do empresário. Nessas relações observar-se-ão, como fontes inspiradoras da regência, as teorias da aparência e da proteção do terceiro de boa-fé que contrata com a sociedade.” Rubens Requião é mais enfático no que tange à aplicação da teoria da aparência: “A doutrina que dá validade a tal cláusula é evidentemente contrária às tendências e espírito do direito comercial. Tem razão Eunápio Borges ao comentar que ‘além de sumamente nocivo à rapidez com que devem realizar-se os negócios comerciais, é de fato impraticável exigir-se, em cada caso, que terceiros examinem, nas Juntas Comerciais, os contratos ou estatutos das sociedades com que contratam’.” Como visto acima, alguns doutrinadores atrelam o afastamento da teoria ultra vires aos casos em que o terceiro for um consumidor. Esta leitura, no entanto, minimiza a necessidade de hermenêutica de cada caso concreto e também deixa de levar em consideração que a exigência de consulta aos assentos das Juntas Comerciais onera e protela a realização das operações mercantis. Logo, a aplicação da teoria da aparência deve ser concebida caso a caso, sem prejuízo de sua conjugação com o princípio da proporcionalidade, pois interpretar de modo diverso é infringir a justa medida indispensável a toda hermenêutica praticada no Estado Democrático de Direito.

6. Conclusão A teoria do ato ultra vires, de origem inglesa, foi positivada pela Lei 10.406/2002, objetivando tornar inoponível os atos praticados pelos sócios que sejam estranhos ao objeto social.

Esta teoria já estava superada no sistema que a concebeu e, também, no ordenamento jurídico pátrio, uma vez que a doutrina e a jurisprudência vinham adotando a moderna teoria da aparência, que responsabiliza a sociedade por todos os atos praticados em seu nome, com o fim de proteger o terceiro de boa-fé. Neste panorama, é indispensável vislumbrar o instituto pelo ângulo constitucional, com a aplicação do princípio da proporcionalidade. Por óbvio, não há a necessidade do afastamento literal do instituto, até porque toda lei tem presunção de constitucionalidade. A mitigação da teoria, no entanto, não tem aplicabilidade somente nas relações de consumo, como crê parte da doutrina, mas em toda relação mercantil em que a monta do negócio for incompatível com a diligência de buscar atos constitutivos na Junta Comercial. Não é proporcional determinar tal formalidade para todo e qualquer negócio praticado entre empresários, mas somente para as relações jurídicas em que se espera esta formalidade, como por exemplo, um contrato de empréstimo de grande valor firmado com uma instituição financeira. A ponderação deve estar presente não somente na interpretação constitucional, e sim em toda interpretação da norma infraconstitucional, pois cabe aos operadores do direito a integração das normas legais ao fim constitucional, com o escopo de garantir a mantença do Estado Democrático de Direito.

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